Textos da curadora e galerista Loly Demercian e do consultor de diversidade e inclusão Humberto Baltar

 

EM SE PISANDO TUDO DÁ [¹]
Escrever sobre os trabalhos do artista visual Milton Blaser não é uma tarefa fácil, por envolver situações atuais e experiências de vida. Para ser artista na contemporaneidade é curial saber atualizar-se sempre, numa relação direta com as coisas do seu entorno. A experiência vivencial é mecanismo fundamental nesse processo.
Deleuze e Guattari sugerem que, se existe progressão na arte, é porque ela não pode viver sem criar novos perceptos, novos afetos, especialmente a construção de novas significações, a partir do desenvolvimento da figura da “experiência primeira“, além do contato direto do expectador com a obra, num diálogo com o mundo em tempo real.
Passados dois anos de paralisação e letargia no mundo por conta da pandemia, as experiências foram compartilhadas e transmitidas pelas telas de computadores, com a utilização de mídias sociais. Milton, nesse tempo de reclusão compartilhada, deparou-se com questões que afligem, desde sempre, suas memórias sobre intolerância e alteridade, ou seja, perceber o outro como uma pessoa singular e subjetiva.
O artista, que tem ascendência judaica, conhece bem as questões que envolvem a intolerância racial e religiosa. Ele se deparou com essas experiências pós-pandêmicas num simples supermercado de bairro; numa situação discriminatória, ele se sentiu abalado por não poder reagir em assuntos delicados de intolerância racial e de minorias. Foi por essa situação vivencial que Milton começou a pesquisar e usar sua criatividade, de modo a deflagrar e denunciar as atrocidades contemporâneas
Na exposição realizada na CASAGALERIA e oficina de arte Loly Demercian, EM SE PISANDO TUDO DÁ , Milton Blaser apresenta sua pesquisa baseada no Antropoceno, Patriarcado e a Masculinidade e a Invisibilidade das pessoas.
Em relação ao início de toda a discriminação da cor, no trabalho TIRANIAS (2022), ele retrata a potência do Patriarcado dominador. Milton traduziu essa experiência em papéis Kraft, pintados nas cores brancas e pretas, com enormes pênis eretos, servindo como estandartes de uma imensa selva de genitálias, como se a masculinidade fosse o centro onipresente do universo.
No século XVIII, em 1788, o teórico de arte Claude-Henri Watelet afirmou em seu verbete do Dictionnaire des Beaux-Arts [Dicionário de Belas Artes], que branca exprimia a luz e, consequentemente, na era do Iluminismo, a clarividência e a inteligência humanas guiadas por um desejo de perfectibilidade. Nesse período ele já utilizava a metáfora do Iluminismo como forma de evocar um conjunto de projetos e debates jurídicos, filosóficos, artísticos, científicos e literários. A associação, por um lado, entre a raça branca e o progresso racional, e, por outro lado, entre a raça negra e a ausência e privação deste – que pode ser deduzida não apenas naquela inofensiva sentença, mas, de modo geral, nos discursos estéticos do século XVIII. [²]
Segundo Anne Lafont, a produção artística e o discurso do século XVIII, produziram ferramentas de observação, permitindo que os seres humanos fossem diferenciados e também classificados implicitamente em escala moral, numa iniciativa que posteriormente redundaria em racismo explicito.
Percebemos também que, além do racismo (nas cores que o artista escolheu), há também a questão da representação do pênis na arte, deflagrando o machismo que compõe e dita normas desde os primórdios da civilização, remontando à arte Grega.
No trabalho PRENSA (2022) Milton sobrepõe pisos sobre imagens de pessoas, representando semióticamente indivíduos invisíveis, fazendo uma alusão à destruição do ecossistema e o subjacente interesse econômico advindo do Antropoceno.
Para capturar a atenção do espectador, o artista quebrou o teto da galeria abrindo um buraco que permite a visualização do céu, posto que um pedacinho dele. Vê-se, portanto, a natureza refletida no trabalho, para dar ideia de ações do homem em relação a áreas devastadas, desvios de rios e o próprio lixo que produzimos todos os dias (o entulho do teto faz parte do trabalho).
No terceiro trabalho, ANÔNIMOS (2022), o artista produziu dois painéis: o primeiro, retratando rostos de pessoas desconhecidas como se a instalação Prensa fosse estendida para além do seu espaço e temporalidade, reforçando ao espectador a reflexões sobre o Antropoceno e Invisibilidades; o segundo, sem rostos, sugerindo a existência de indivíduos que não são olhados ou notados no sistema do poder.
E finalmente no quarto trabalho, a série ANTROPOGENIA (2022), o artista produziu 22 colagens com reproduções digitalizadas dos pisos e rostos anônimos, que exploram bidimensionalmente a temática da instalação Prensa, trazendo aos espectadores novas possibilidades de pensamentos.
Como ressalta Ailton Krenak: […] o Antropoceno tem um sentido incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia do que é humano. A conclusão ou compreensão de que estamos vivendo uma era que pode ser identificada como Antropoceno, deveria soar como um alarme nas nossas cabeças. A grande maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos jogados nesse abismo. [³]
Loly Demercian

 

EM SE PISANDO TUDO DÁ
     Por Humberto Baltar
A possibilidade de se ver em obras de arte ainda é raridade na vivência de homens pretos. Embora no Brasil o patriarcado seja a força motriz que impulsiona todas as esferas de poder, as masculinidades e paternidades pretas permanecem à margem dessa realidade. O apagamento e a invisibilização dos homens pretos os colocam num lugar de constante busca por ressignificação e reconhecimento, passando muitas vezes até mesmo pela reprodução de padrões nocivos, tóxicos e agressivos na busca por um lugar social que os atribua o papel de dominantes, potentes ou poderosos.
As mulheres também passam pela mesma invisibilização e na verdade isso ocorre com tudo e todos que não são marco zero do patriarcado, como os povos originários, o meio ambiente e as colônias, por exemplo. Todo o resto é vítima. O trabalho de Milton Blaser denuncia o que acontece a partir dessa visão de mundo em que há um ideal e tudo o que difere se torna alvo, invisibilizado ou deslegitimado.
As obras de Milton Blaser na exposição Em se pisando tudo dá aborda essa inquietude e anseio de sujeitos marginalizados e invisibilizados de forma sutil e ainda assim contundente, como podemos ver na instalação Prensa, onde essas pessoas estão prensadas pela estrutura. Vemos que apesar da tensão em que se encontram, estão todas ali juntas, próximas e até certo ponto presas, o que remete ao caos urbano observado nas grandes cidades. Em Tiranias, as imagens de pênis representando a diversidade masculina nos mostra que há múltiplas formas de abuso perpetradas pelo homem branco e preto, tais como a violência de gênero, a poluição e a exploração da natureza. No Antropoceno, esse homem exerce seu poder destrutivo e egocêntrico sobre a Terra sob formas de exploração que não apenas desequilibram os ecossistemas mas também contribuem para a degradação do próprio planeta, como as diversas formas de destruição do solo, mudanças climáticas, extinção de espécies ou produção de lixo.
O Antropoceno e seus efeitos nas vivências de pessoas que não desfrutam uma posição de protagonismo social são evidenciados também na série de colagens Antropogenia. Me vi em várias obras e pude constatar o quanto ainda precisamos caminhar enquanto sociedade na luta por equidade e igualdade de acesso aos direitos mais básicos, como a simples possibilidade de existência, por exemplo. Me senti convidado pelo artista a me envolver ainda mais na luta pelo mundo inclusivo, plural e diverso que eu quero deixar para o meu filho e todos os que vierem depois.

 
 

1   O nome remete a carta de Pero Vaz de Caminha sinalizando colonização e exploração da terra “descoberta”.
2   Revista ARS42- artigo inédito de Anne Lafont, com tradução de Liliane Benetti.
“Como a cor de pele tornou-se um marcador racial: perspectivas sobre raça a partir da História da arte”
3   Krenak, Ailton. “Idéias para adiar o fim do mundo”. Companhia das letras, 2019.